sábado, 25 de julho de 2009
Entrevista Imaginária com Machado de Assis
Está ficando tarde.
MACHADO DE ASSIS – Estás com sono?
Não muito, senhor.
MA – Nem eu; conversemos um pouco, então. Que horas são?
Quase onze.
MA – Falemos como dois amigos sérios. Não que se trate de algum diálogo sigiloso, desses que as pessoas travam a portas fechadas, revelando fatos considerados dignos de importância. Andemos pelas ruas e conversemos.
[Fui acompanhando os passos firmes de Machado. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, havíamos percorrido tantas vielas da cidade, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino certo.]
O senhor parece apreciar os passeios pela obscuridade, estando sempre à cata do mínimo e do escondido. Confesso ser um ávido leitor dos seus textos e freqüentemente me deparo com passagens surpreendentes a respeito dos contrastes que impregnam os corações humanos. Acredito que todos os leitores ficam enredados nas teias urdidas pelo seu intelecto enigmático de bruxo.
[Insinuei também que sua casa parecia estar muitíssimo longe, mas o escritor não entendeu ou não me ouviu – se é que não fingiu uma dessas coisas – e seguiu andando, apenas comentando a minha primeira observação. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.]
MA – Ora essa, meu peralta, não estamos a todo o momento ensaiando o drama tragicômico da existência humana? O tempo todo não transitamos entre as vias da vida e da morte, do egoísmo e do interesse, do jogo e do engano? Os indivíduos comungam, a um só tempo, da transitoriedade que inutiliza os esforços e da atuação indispensável no palco da história.
Do mesmo modo que o senhor demonstrou em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o primeiro grande romance da nossa literatura? Acaso a perspectiva do defunto autor, que narra suas memórias a partir do além-túmulo, dedicando a obra ao primeiro verme que se apossou de sua carne, transita pelas vias que o senhor há pouco mencionou?
MA – Ah! brejeiro! ah! brejeiro! A perspectiva da morte coloca o meu narrador protagonista no limiar do ser e do não-ser. Por meio do processo narrativo, Brás Cubas, falando a partir do eterno presente da vida após a morte, reitera os fatos que viveu e as ações que praticou no passado. Da distância sobrenatural que lhe possibilita o desvelamento total de si, o narrador lança um olhar denso e profundo sobre a realidade, revelando, com a pena móvel e instável da galhofa e da melancolia, os meandros dúbios e volúveis de sua consciência.
As memórias de Brás Cubas estão interligadas com a própria matéria histórica nacional. Todas as faces do Brasil são revisitadas no decorrer das confissões do narrador. Até que ponto Brás Cubas, ao pensar sobre a própria vida, nos faz pensar também sobre a vida no Brasil?
MA – Brás Cubas nasceu em 1805 e faleceu em 1869. Foi um menino criado entre a vulgaridade dos caracteres, o amor das aparências e da matéria, a frouxidão da vontade e a vitória do capricho. Sua vida transcorreu juntamente com a consolidação do sistema escravista, em uma sociedade de estrutura arcaica – agrária e patriarcal –, em meio a uma sociedade rigidamente dividida e hierarquizada – composta por uma abastada classe senhorial, por trabalhadores escravos trazidos à força da África, por agregados interesseiros e por funcionários públicos oportunistas. Por outro lado, há um desejo de modernização do país a todo custo. As intrincadas relações de poder configuram uma nação de futuro incerto. Se, ao final, Brás Cubas indagasse sobre a finalidade de sua vinda ao mundo, certamente encontraria, entre as possíveis respostas, o suplício impingido aos escravos e o sofrimento de Eugênia, os desejos de glória nunca alcançados e a traição ao marido de Virgília. Brás Cubas é o homem que viu enlouquecer o amigo Quincas Borba, mergulhado nos delírios do Humanitismo, mas também é testemunha de um longo período de nossa história – que compreende o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado –, no qual viveram homens não menos enlouquecidos.
A narração de Brás Cubas questiona e relativiza a consciência, os fatos históricos e a natureza humana. As reflexões tecidas se constituem por um misto de cinismo cético e irônico pessimismo. O humor de Brás Cubas é sempre fruto do desdém e da zombaria?
MA – O humor irônico é filho do tédio e da melancolia. Nem mesmo o ambicionado emplasto, cuja criação impregnara a mente de Brás Cubas como uma idéia fixa, nos últimos tempos de vida, seria capaz de livrar a alma humana desses dois dons amavelmente concedidos por Saturno. Revelar a alma humana, a partir das digressões de um morto acerca de si mesmo e do meio em que viveu, é escancarar para o leitor os aborrecimentos da vida e o desfecho de tudo em um nada completo. A visão de Brás Cubas sobre a matéria narrada é relativista e amoral; vinga-se dos tormentos humanos por meio da única arma possível diante da vida: o riso. O contato com a realidade dói e fere. Ao final do espetáculo, todos partimos decepcionados para o subterrâneo. Alude-se ao saber humano como a um triste acervo de misérias ou a uma galeria de heróis fracassados. Lembre-se do que nos disse Brás Cubas, recordando o auge do seu delírio, em pleno leito de morte: “[...] a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo.”
Este é o típico discurso cáustico que corrói toda a inocência. A vida não é feita para principiantes, muito menos no Brasil. Mas o sono, irmão da morte, começa a me vencer.
[O passeio parecia-me um tanto extravagante e começava a me deixar um tanto aturdido. Estava calor e as reflexões do meu interlocutor começavam a seguir por rumos impalpáveis demais.]
MA – Vejo que a nossa prosa se estendeu mais do que deveria. É tarde. Precisamos seguir nossos caminhos. Medite bem a respeito do que te disse, meu jovem, e veja se aprovas. Foi um debate sobre várias questões de alta transcendência. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, ou o Secretum de Petrarca. Lembremo-nos, ainda uma vez, das palavras de Brás Cubas: “Grande cousa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.” Enfim, vamos para casa. O que disse? Ah, sim! Podes usar à vontade os trechos do colóquio que julgares proveitosos. Dedique-os às primeiras traças que, depois de um século, roerem as páginas da primeira edição do meu Brás Cubas. Um piparote e adeus!
[Reiterado o convite para que continuássemos a conversar em outra oportunidade – entre as estantes da Livraria Garnier ou na sala de visitas do Cosme Velho –, nos despedimos e eu fiquei observando meu amigo partir. A verdade é que eu estivera em contato com um mestre; era o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa para além das palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério. Concluído o diálogo, ele acenou uma última vez e, com um suspiro, retornou à imortalidade, dispersando-se na noite e no silêncio.]
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (Vídeos)
Craveirinha
Paulina Chiziane
Pepetela, Ondjaki, Agualusa
Complementação - Arte Africana
Imprescindíveis (Bandeira, Drummond, Lispector, Rosa, Veríssimo)
Carlos Drummond de Andrade
Clarice Lispector
Guimarães Rosa
Érico Veríssimo
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Poemas de Manuel Bandeira
- Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?
- Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe. . .
Voltei, te trouxe a alegria.
- Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.
- Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia...
- E esqueceste Pernambuco,
Distraída?
- Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.
- Aurora da minha vida,
- Que os anos não trazem mais!
- Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
- Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei
—Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.