"Antes do homem há o mundo, e o mistério do mundo. Estamos dentro: no âmago do ser, no âmago do mistério – no âmago de tudo. Não, por certo, no centro do universo, pois nada indica que haja um centro (se ele é infinito, a idéia de um centro seria contraditória), mas nele, envolvidos por todos os lados pelo que ele é ou contém (bilhões de galáxias, cada uma composta de bilhões de estrelas ou de sistemas solares), porém incapazes de sair dele vivos, ou simplesmente de sair dele... Um cadáver é coisa do mundo. Uma idéia – uma vez que alguém a pense ou dela se lembre – também. [...]
Depois, há a história: a história do mundo, a história da vida, a história da humanidade... Quando lecionava no último ano do colégio, às vezes começava a desenhar seu traçado no quadro-negro. Um longo traço horizontal, o mais retilíneo possível, por toda a extensão do quadro-negro. Na extremidade direita: estamos aqui (“agora”). Alguns centímetros à esquerda: a Segunda Guerra Mundial; em seguida, alguns centímetros mais adiante, a Primeira... Continuava, respeitando mais ou menos as proporções: aqui, a Revolução Francesa; aqui, a invenção da imprensa, depois o reinado de Carlos Magno, depois a queda do Império Romano, depois Júlio César, depois o século de Péricles... Estávamos perto da metade do meu traço. A invenção da escrita? Foi há uns cinco mil anos: chegamos à extremidade esquerda do quadro. Eu prolongava o traço pela parede: a pré-história... Aqui, aproximadamente, a idade do bronze, aqui a revolução neolítica, há mais ou menos dez mil anos... A parede acabava ali. Eu mostrava, pela janela, o pátio do recreio, a rua, a cidade... O paleolítico? Começa, ou melhor, termina, se voltarmos no tempo, no pátio. O aparecimento do homo sapiens? É ali, em algum lugar, do outro lado da rua, a cem ou duzentos metros... Homo erectus, homo habilis? Dois ou três quilômetros. Os primeiros hominídeos? Cerca de seis quilômetros. Os primeiros primatas? Cinqüenta ou sessenta. Os primeiros mamíferos? Cerca de duzentos quilômetros. O surgimento da vida na Terra? É bem mais longe: mais de três bilhões de anos, talvez quatro, ou seja, em algum lugar, se a classe estivesse voltada para o oeste, no meio do Atlântico. A constituição do sistema solar? Cinco bilhões de anos: aproximamo-nos da costa americana. O big-bang? Entre doze e quinze bilhões de anos, ao que parece: chegamos ao oceano Pacífico, mas do lado oeste, não longe do Japão ou do mar da China... Antes do big-bang? Mostrava o horizonte, o céu, o infinito: não se sabe, nem mesmo se houve um antes! Então eu voltava para a extremidade direita do quadro, para os quatro ou cinco centimetrozinhos que nos separavam de Auschwitz ou de Hiroshima... Punha meu dedo no meio desse minúsculo segmento: vocês nasceram aqui, dizia-lhes, mas não estariam aí sem tudo o que veio antes.
Antes de todo homem há a história: a história do mundo, a história da vida, a história dos homens. O plural precede o singular que ele supõe. A espécie precede o indivíduo, assim como outras espécies a precedem. Que esses grandes macacos que somos [...] tenham acabado por inventar a agricultura e a metalurgia, a arte e a religião, a escrita e as ciências, a moral e a política, a máquina a vapor e a informática, a gastronomia e o erotismo, o direito e a seguridade social, a filosofia e a conversação, não era previsível e não é nada desprezível! Que em meio a tudo isso tenha havido um assustador acúmulo de horrores – guerras e massacres, torturas e estupros, escravidões e genocídios –, isso ninguém ignora. [...] Miséria do homem: somente os humanos podem ser desumanos. Grandeza do homem: somente eles podem – e devem – tornar-se humanos. Anti-humanismo teórico: o homem não é mais que um animal entre outros. Humanismo prático: cabe a nós fazer dele outra coisa. [...]
Não se sabe como isso começou, nem mesmo se houve um começo. Mas sabemos que só fazemos continuar essa história que nos precede, que nos gera, que nos habita, que é essa nossa tarefa, nosso destino, nossa dignidade, enfim, o único lugar possível, para nós, tanto da coragem como da felicidade. Toda vida é recebida. Resta apenas vivê-la. Gerada, não criada. Resta apenas inventá-la."
Depois, há a história: a história do mundo, a história da vida, a história da humanidade... Quando lecionava no último ano do colégio, às vezes começava a desenhar seu traçado no quadro-negro. Um longo traço horizontal, o mais retilíneo possível, por toda a extensão do quadro-negro. Na extremidade direita: estamos aqui (“agora”). Alguns centímetros à esquerda: a Segunda Guerra Mundial; em seguida, alguns centímetros mais adiante, a Primeira... Continuava, respeitando mais ou menos as proporções: aqui, a Revolução Francesa; aqui, a invenção da imprensa, depois o reinado de Carlos Magno, depois a queda do Império Romano, depois Júlio César, depois o século de Péricles... Estávamos perto da metade do meu traço. A invenção da escrita? Foi há uns cinco mil anos: chegamos à extremidade esquerda do quadro. Eu prolongava o traço pela parede: a pré-história... Aqui, aproximadamente, a idade do bronze, aqui a revolução neolítica, há mais ou menos dez mil anos... A parede acabava ali. Eu mostrava, pela janela, o pátio do recreio, a rua, a cidade... O paleolítico? Começa, ou melhor, termina, se voltarmos no tempo, no pátio. O aparecimento do homo sapiens? É ali, em algum lugar, do outro lado da rua, a cem ou duzentos metros... Homo erectus, homo habilis? Dois ou três quilômetros. Os primeiros hominídeos? Cerca de seis quilômetros. Os primeiros primatas? Cinqüenta ou sessenta. Os primeiros mamíferos? Cerca de duzentos quilômetros. O surgimento da vida na Terra? É bem mais longe: mais de três bilhões de anos, talvez quatro, ou seja, em algum lugar, se a classe estivesse voltada para o oeste, no meio do Atlântico. A constituição do sistema solar? Cinco bilhões de anos: aproximamo-nos da costa americana. O big-bang? Entre doze e quinze bilhões de anos, ao que parece: chegamos ao oceano Pacífico, mas do lado oeste, não longe do Japão ou do mar da China... Antes do big-bang? Mostrava o horizonte, o céu, o infinito: não se sabe, nem mesmo se houve um antes! Então eu voltava para a extremidade direita do quadro, para os quatro ou cinco centimetrozinhos que nos separavam de Auschwitz ou de Hiroshima... Punha meu dedo no meio desse minúsculo segmento: vocês nasceram aqui, dizia-lhes, mas não estariam aí sem tudo o que veio antes.
Antes de todo homem há a história: a história do mundo, a história da vida, a história dos homens. O plural precede o singular que ele supõe. A espécie precede o indivíduo, assim como outras espécies a precedem. Que esses grandes macacos que somos [...] tenham acabado por inventar a agricultura e a metalurgia, a arte e a religião, a escrita e as ciências, a moral e a política, a máquina a vapor e a informática, a gastronomia e o erotismo, o direito e a seguridade social, a filosofia e a conversação, não era previsível e não é nada desprezível! Que em meio a tudo isso tenha havido um assustador acúmulo de horrores – guerras e massacres, torturas e estupros, escravidões e genocídios –, isso ninguém ignora. [...] Miséria do homem: somente os humanos podem ser desumanos. Grandeza do homem: somente eles podem – e devem – tornar-se humanos. Anti-humanismo teórico: o homem não é mais que um animal entre outros. Humanismo prático: cabe a nós fazer dele outra coisa. [...]
Não se sabe como isso começou, nem mesmo se houve um começo. Mas sabemos que só fazemos continuar essa história que nos precede, que nos gera, que nos habita, que é essa nossa tarefa, nosso destino, nossa dignidade, enfim, o único lugar possível, para nós, tanto da coragem como da felicidade. Toda vida é recebida. Resta apenas vivê-la. Gerada, não criada. Resta apenas inventá-la."
(in A vida humana)
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