sexta-feira, 24 de julho de 2009

15 de Maio de 1905 (Alan Lightman)


"Imagine um mundo em que não há tempo. Somente imagens.
Uma criança à beira do mar, enfeitiçada pela primeira visão que tem do oceano. Uma mulher de pé em uma sacada de madrugada, cabelos soltos, vestindo folgadas roupas de dormir de seda, seus pés descalços, seus lábios. O arco da galeria perto da fonte Zähringer na Kramgasse, arenito e ferro. Um homem sentado na quietude de seu estúdio, segurando a fotografia de uma mulher; há dor no olhar dele. Uma águia-pescadora emoldurada no céu, as asas abertas, os raios do sol perfurando suas penas. Um menino sentado em um auditório vazio, seu coração em disparada como se estivesse no palco. Pegadas na neve em uma ilha no inverno. Um barco na água à noite, suas luzes tênues na distância, como uma pequena luz vermelha no céu negro. Um armário de remédios trancado. Uma folha no chão no outono, vermelha, dourada e marrom, delicada. Uma mulher agachada, esperando entre arbustos próximos à casa do ex-marido, com quem precisa conversar. Uma chuva leve em um dia de primavera, em um passeio que será o último passeio que um jovem fará no lugar que ele ama. Poeira em um peitoril de janela. Uma pilha de pimentões na Marktgasse, amarelos, verdes, vermelhos. Matterhorn, o pico todo branco cujas pontas forçam passagem para dentro do sólido céu azul, o vale verde e os chalés de lenhadores. O buraco de uma agulha. Mofo nas folhas, cristal, opalescente. Uma mãe em sua cama, chorando, cheiro de manjericão no ar. Uma criança em uma bicicleta na Kleine Schanze, sorrindo o sorriso de uma vida. Uma torre para preces, alta e octogonal, sacada aberta, solene, rodeada de brasões. Vapor subindo de um lago no início da manhã. Uma gaveta aberta. Dois amigos em um café, o lustre iluminando o rosto de um dos amigos, o outro na penumbra. Um gato olhando um inseto na janela. Uma jovem em um banco, lendo uma carta, lágrimas de contentamento em seus olhos verdes. Um amplo descampado, delimitado por cedros e espruces. Luz do sol, em ângulos abertos, rompendo uma janela no fim da tarde. Uma imensa árvore caída, raízes esparramadas no ar, casca e ramos ainda verdes. O branco de um veleiro, com o vento de popa, velas se agitando como asas de um gigantesco pássaro branco. Um pai e um filho sozinhos em um restaurante, o pai, triste, olhos fixos na toalha de mesa. Uma janela oval, de onde se avistam campos de feno, uma carroça de madeira, vacas, verde e púrpura na luz da tarde. Uma garrafa quebrada no chão, líquido marrom nas fissuras do piso, uma mulher com os olhos vermelhos. Um velho na cozinha, preparando o café da manhã para o neto, o menino à janela com os olhos fixos em um banco pintado de branco. Um livro surrado sobre uma mesa ao lado de um abajur de luz branda. O branco na água quando quebra uma onda, erguida pelo vento. Uma mulher deitada no sofá, cabelos molhados, segurando a mão de um homem que nunca voltará a ver. Um trem com vagões vermelhos, sobre uma grande ponte de pedra, de arcos delicados, o rio que sob ela corre, minúsculos pontos que são as casas à distância. Partículas de poeira flutuando nos raios de sol que entram por uma janela. A pele fina que recobre um pescoço, fina o suficiente para se sentir o pulsar do sangue que sob ela corre. Um homem e uma mulher nus, envolvidos um no outro. As sombras azuis das árvores numa noite de lua cheia. O topo de uma montanha com um vento forte constante, os vales que se esparramam por todas as suas bordas, sanduíches de carne e queijo. Uma criança se esquivando do colo do pai, os lábios do pai retesados de raiva, a criança sem entender. Um rosto estranho no espelho, grisalho nas têmporas. Um jovem segurando um telefone, estupefato com o que está ouvindo. Uma foto de família, os pais jovens e tranqüilos, as crianças trajando gravatas e vestidos e sorrindo. Uma pequeniníssima luz, visível por entre as árvores de um bosque. O vermelho do pôr-do-sol. Uma casca de ovo, branca, frágil, intacta. Um chapéu azul na praia, trazido pela maré. Rosas aparadas flutuando sob uma ponte, próximas a um castelo que vai emergindo. O cabelo ruivo de uma amante, selvagem, traiçoeiro, promissor. As pétalas púrpuras de uma íris na mão de uma jovem mulher. Um quarto com quatro paredes, duas janelas, duas camas, uma mesa, um lustre, duas pessoas de rostos vermelhos, lágrimas. O primeiro beijo. Planetas no espaço, oceanos, silêncio. Uma gota d’água na janela. Uma corda enrolada. Uma vassoura amarela."

(in Sonhos de Einstein)

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