sábado, 25 de julho de 2009

Entrevista Imaginária com Machado de Assis

Uma noite destas, caminhando pela Rua do Ouvidor, encontrei, diante da entrada da Livraria Garnier, um senhor modesto e introvertido, que eu conheço de vista e de ouvir falar. Cumprimentou-me, falou do tempo quente e abafado, e pôs-se a andar ao meu lado, acabando por encetar um diálogo. Aconteceu, porém, que, devido ao cansaço, comecei a piscar os olhos e a lacrimejar após um bocejo involuntário; tanto bastou para que ele interrompesse a conversa e, com um sorriso fino e quase imperceptível, fizesse menção de afastar-se. Impedi-o a tempo e pedi que me perdoasse. Meu novo companheiro, parecendo vencer a introversão que o fazia hesitar em continuar a conversa, explicou-me que não costumava ficar até tão tarde fora de casa e que sua esposa, D. Carolina, certamente o esperava, preocupada, na modesta sala da residência do casal, no Cosme Velho. Em razão de compromissos com o editor, retardara o retorno para o lar. Sorri compreensivamente, reconhecendo, naquele rosto um tanto inquieto que me fitava, a fisionomia do escritor Joaquim Maria Machado de Assis. Seguimos por ruas escuras, rompendo com risos e gracejos o silêncio que sempre acompanha o percurso dos solitários. Ao final do trajeto, convidou-me a visitá-lo quando quisesse e autorizou-me a transcrever trechos de nossa conversa na coluna de entrevistas do jornal para o qual eu trabalho. Segue, nas próximas páginas, um pouco do que Machado disse naquela ocasião.

Está ficando tarde.

MACHADO DE ASSIS – Estás com sono?

Não muito, senhor.

MA – Nem eu; conversemos um pouco, então. Que horas são?

Quase onze.

MA – Falemos como dois amigos sérios. Não que se trate de algum diálogo sigiloso, desses que as pessoas travam a portas fechadas, revelando fatos considerados dignos de importância. Andemos pelas ruas e conversemos.

[Fui acompanhando os passos firmes de Machado. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, havíamos percorrido tantas vielas da cidade, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino certo.]

O senhor parece apreciar os passeios pela obscuridade, estando sempre à cata do mínimo e do escondido. Confesso ser um ávido leitor dos seus textos e freqüentemente me deparo com passagens surpreendentes a respeito dos contrastes que impregnam os corações humanos. Acredito que todos os leitores ficam enredados nas teias urdidas pelo seu intelecto enigmático de bruxo.

[Insinuei também que sua casa parecia estar muitíssimo longe, mas o escritor não entendeu ou não me ouviu – se é que não fingiu uma dessas coisas – e seguiu andando, apenas comentando a minha primeira observação. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.]

MA – Ora essa, meu peralta, não estamos a todo o momento ensaiando o drama tragicômico da existência humana? O tempo todo não transitamos entre as vias da vida e da morte, do egoísmo e do interesse, do jogo e do engano? Os indivíduos comungam, a um só tempo, da transitoriedade que inutiliza os esforços e da atuação indispensável no palco da história.

Do mesmo modo que o senhor demonstrou em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o primeiro grande romance da nossa literatura? Acaso a perspectiva do defunto autor, que narra suas memórias a partir do além-túmulo, dedicando a obra ao primeiro verme que se apossou de sua carne, transita pelas vias que o senhor há pouco mencionou?

MA – Ah! brejeiro! ah! brejeiro! A perspectiva da morte coloca o meu narrador protagonista no limiar do ser e do não-ser. Por meio do processo narrativo, Brás Cubas, falando a partir do eterno presente da vida após a morte, reitera os fatos que viveu e as ações que praticou no passado. Da distância sobrenatural que lhe possibilita o desvelamento total de si, o narrador lança um olhar denso e profundo sobre a realidade, revelando, com a pena móvel e instável da galhofa e da melancolia, os meandros dúbios e volúveis de sua consciência.

As memórias de Brás Cubas estão interligadas com a própria matéria histórica nacional. Todas as faces do Brasil são revisitadas no decorrer das confissões do narrador. Até que ponto Brás Cubas, ao pensar sobre a própria vida, nos faz pensar também sobre a vida no Brasil?

MA – Brás Cubas nasceu em 1805 e faleceu em 1869. Foi um menino criado entre a vulgaridade dos caracteres, o amor das aparências e da matéria, a frouxidão da vontade e a vitória do capricho. Sua vida transcorreu juntamente com a consolidação do sistema escravista, em uma sociedade de estrutura arcaica – agrária e patriarcal –, em meio a uma sociedade rigidamente dividida e hierarquizada – composta por uma abastada classe senhorial, por trabalhadores escravos trazidos à força da África, por agregados interesseiros e por funcionários públicos oportunistas. Por outro lado, há um desejo de modernização do país a todo custo. As intrincadas relações de poder configuram uma nação de futuro incerto. Se, ao final, Brás Cubas indagasse sobre a finalidade de sua vinda ao mundo, certamente encontraria, entre as possíveis respostas, o suplício impingido aos escravos e o sofrimento de Eugênia, os desejos de glória nunca alcançados e a traição ao marido de Virgília. Brás Cubas é o homem que viu enlouquecer o amigo Quincas Borba, mergulhado nos delírios do Humanitismo, mas também é testemunha de um longo período de nossa história – que compreende o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado –, no qual viveram homens não menos enlouquecidos.

A narração de Brás Cubas questiona e relativiza a consciência, os fatos históricos e a natureza humana. As reflexões tecidas se constituem por um misto de cinismo cético e irônico pessimismo. O humor de Brás Cubas é sempre fruto do desdém e da zombaria?

MA – O humor irônico é filho do tédio e da melancolia. Nem mesmo o ambicionado emplasto, cuja criação impregnara a mente de Brás Cubas como uma idéia fixa, nos últimos tempos de vida, seria capaz de livrar a alma humana desses dois dons amavelmente concedidos por Saturno. Revelar a alma humana, a partir das digressões de um morto acerca de si mesmo e do meio em que viveu, é escancarar para o leitor os aborrecimentos da vida e o desfecho de tudo em um nada completo. A visão de Brás Cubas sobre a matéria narrada é relativista e amoral; vinga-se dos tormentos humanos por meio da única arma possível diante da vida: o riso. O contato com a realidade dói e fere. Ao final do espetáculo, todos partimos decepcionados para o subterrâneo. Alude-se ao saber humano como a um triste acervo de misérias ou a uma galeria de heróis fracassados. Lembre-se do que nos disse Brás Cubas, recordando o auge do seu delírio, em pleno leito de morte: “[...] a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo.”

Este é o típico discurso cáustico que corrói toda a inocência. A vida não é feita para principiantes, muito menos no Brasil. Mas o sono, irmão da morte, começa a me vencer.
[O passeio parecia-me um tanto extravagante e começava a me deixar um tanto aturdido. Estava calor e as reflexões do meu interlocutor começavam a seguir por rumos impalpáveis demais.]

MA – Vejo que a nossa prosa se estendeu mais do que deveria. É tarde. Precisamos seguir nossos caminhos. Medite bem a respeito do que te disse, meu jovem, e veja se aprovas. Foi um debate sobre várias questões de alta transcendência. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, ou o Secretum de Petrarca. Lembremo-nos, ainda uma vez, das palavras de Brás Cubas: “Grande cousa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.” Enfim, vamos para casa. O que disse? Ah, sim! Podes usar à vontade os trechos do colóquio que julgares proveitosos. Dedique-os às primeiras traças que, depois de um século, roerem as páginas da primeira edição do meu Brás Cubas. Um piparote e adeus!

[Reiterado o convite para que continuássemos a conversar em outra oportunidade – entre as estantes da Livraria Garnier ou na sala de visitas do Cosme Velho –, nos despedimos e eu fiquei observando meu amigo partir. A verdade é que eu estivera em contato com um mestre; era o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa para além das palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério. Concluído o diálogo, ele acenou uma última vez e, com um suspiro, retornou à imortalidade, dispersando-se na noite e no silêncio.]

(Vicente Luís de Castro Pereira.
Posfácio a Memórias Póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Saraiva, 2009. Col. Clássicos Saraiva.)

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