sábado, 25 de julho de 2009

Concretismo

Poesia Concreta













Diálogos -
Augusto de Campos, Arnaut Daniel e Ezra Pound

Entrevista Imaginária com Machado de Assis

Uma noite destas, caminhando pela Rua do Ouvidor, encontrei, diante da entrada da Livraria Garnier, um senhor modesto e introvertido, que eu conheço de vista e de ouvir falar. Cumprimentou-me, falou do tempo quente e abafado, e pôs-se a andar ao meu lado, acabando por encetar um diálogo. Aconteceu, porém, que, devido ao cansaço, comecei a piscar os olhos e a lacrimejar após um bocejo involuntário; tanto bastou para que ele interrompesse a conversa e, com um sorriso fino e quase imperceptível, fizesse menção de afastar-se. Impedi-o a tempo e pedi que me perdoasse. Meu novo companheiro, parecendo vencer a introversão que o fazia hesitar em continuar a conversa, explicou-me que não costumava ficar até tão tarde fora de casa e que sua esposa, D. Carolina, certamente o esperava, preocupada, na modesta sala da residência do casal, no Cosme Velho. Em razão de compromissos com o editor, retardara o retorno para o lar. Sorri compreensivamente, reconhecendo, naquele rosto um tanto inquieto que me fitava, a fisionomia do escritor Joaquim Maria Machado de Assis. Seguimos por ruas escuras, rompendo com risos e gracejos o silêncio que sempre acompanha o percurso dos solitários. Ao final do trajeto, convidou-me a visitá-lo quando quisesse e autorizou-me a transcrever trechos de nossa conversa na coluna de entrevistas do jornal para o qual eu trabalho. Segue, nas próximas páginas, um pouco do que Machado disse naquela ocasião.

Está ficando tarde.

MACHADO DE ASSIS – Estás com sono?

Não muito, senhor.

MA – Nem eu; conversemos um pouco, então. Que horas são?

Quase onze.

MA – Falemos como dois amigos sérios. Não que se trate de algum diálogo sigiloso, desses que as pessoas travam a portas fechadas, revelando fatos considerados dignos de importância. Andemos pelas ruas e conversemos.

[Fui acompanhando os passos firmes de Machado. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, havíamos percorrido tantas vielas da cidade, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino certo.]

O senhor parece apreciar os passeios pela obscuridade, estando sempre à cata do mínimo e do escondido. Confesso ser um ávido leitor dos seus textos e freqüentemente me deparo com passagens surpreendentes a respeito dos contrastes que impregnam os corações humanos. Acredito que todos os leitores ficam enredados nas teias urdidas pelo seu intelecto enigmático de bruxo.

[Insinuei também que sua casa parecia estar muitíssimo longe, mas o escritor não entendeu ou não me ouviu – se é que não fingiu uma dessas coisas – e seguiu andando, apenas comentando a minha primeira observação. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.]

MA – Ora essa, meu peralta, não estamos a todo o momento ensaiando o drama tragicômico da existência humana? O tempo todo não transitamos entre as vias da vida e da morte, do egoísmo e do interesse, do jogo e do engano? Os indivíduos comungam, a um só tempo, da transitoriedade que inutiliza os esforços e da atuação indispensável no palco da história.

Do mesmo modo que o senhor demonstrou em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o primeiro grande romance da nossa literatura? Acaso a perspectiva do defunto autor, que narra suas memórias a partir do além-túmulo, dedicando a obra ao primeiro verme que se apossou de sua carne, transita pelas vias que o senhor há pouco mencionou?

MA – Ah! brejeiro! ah! brejeiro! A perspectiva da morte coloca o meu narrador protagonista no limiar do ser e do não-ser. Por meio do processo narrativo, Brás Cubas, falando a partir do eterno presente da vida após a morte, reitera os fatos que viveu e as ações que praticou no passado. Da distância sobrenatural que lhe possibilita o desvelamento total de si, o narrador lança um olhar denso e profundo sobre a realidade, revelando, com a pena móvel e instável da galhofa e da melancolia, os meandros dúbios e volúveis de sua consciência.

As memórias de Brás Cubas estão interligadas com a própria matéria histórica nacional. Todas as faces do Brasil são revisitadas no decorrer das confissões do narrador. Até que ponto Brás Cubas, ao pensar sobre a própria vida, nos faz pensar também sobre a vida no Brasil?

MA – Brás Cubas nasceu em 1805 e faleceu em 1869. Foi um menino criado entre a vulgaridade dos caracteres, o amor das aparências e da matéria, a frouxidão da vontade e a vitória do capricho. Sua vida transcorreu juntamente com a consolidação do sistema escravista, em uma sociedade de estrutura arcaica – agrária e patriarcal –, em meio a uma sociedade rigidamente dividida e hierarquizada – composta por uma abastada classe senhorial, por trabalhadores escravos trazidos à força da África, por agregados interesseiros e por funcionários públicos oportunistas. Por outro lado, há um desejo de modernização do país a todo custo. As intrincadas relações de poder configuram uma nação de futuro incerto. Se, ao final, Brás Cubas indagasse sobre a finalidade de sua vinda ao mundo, certamente encontraria, entre as possíveis respostas, o suplício impingido aos escravos e o sofrimento de Eugênia, os desejos de glória nunca alcançados e a traição ao marido de Virgília. Brás Cubas é o homem que viu enlouquecer o amigo Quincas Borba, mergulhado nos delírios do Humanitismo, mas também é testemunha de um longo período de nossa história – que compreende o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado –, no qual viveram homens não menos enlouquecidos.

A narração de Brás Cubas questiona e relativiza a consciência, os fatos históricos e a natureza humana. As reflexões tecidas se constituem por um misto de cinismo cético e irônico pessimismo. O humor de Brás Cubas é sempre fruto do desdém e da zombaria?

MA – O humor irônico é filho do tédio e da melancolia. Nem mesmo o ambicionado emplasto, cuja criação impregnara a mente de Brás Cubas como uma idéia fixa, nos últimos tempos de vida, seria capaz de livrar a alma humana desses dois dons amavelmente concedidos por Saturno. Revelar a alma humana, a partir das digressões de um morto acerca de si mesmo e do meio em que viveu, é escancarar para o leitor os aborrecimentos da vida e o desfecho de tudo em um nada completo. A visão de Brás Cubas sobre a matéria narrada é relativista e amoral; vinga-se dos tormentos humanos por meio da única arma possível diante da vida: o riso. O contato com a realidade dói e fere. Ao final do espetáculo, todos partimos decepcionados para o subterrâneo. Alude-se ao saber humano como a um triste acervo de misérias ou a uma galeria de heróis fracassados. Lembre-se do que nos disse Brás Cubas, recordando o auge do seu delírio, em pleno leito de morte: “[...] a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo.”

Este é o típico discurso cáustico que corrói toda a inocência. A vida não é feita para principiantes, muito menos no Brasil. Mas o sono, irmão da morte, começa a me vencer.
[O passeio parecia-me um tanto extravagante e começava a me deixar um tanto aturdido. Estava calor e as reflexões do meu interlocutor começavam a seguir por rumos impalpáveis demais.]

MA – Vejo que a nossa prosa se estendeu mais do que deveria. É tarde. Precisamos seguir nossos caminhos. Medite bem a respeito do que te disse, meu jovem, e veja se aprovas. Foi um debate sobre várias questões de alta transcendência. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, ou o Secretum de Petrarca. Lembremo-nos, ainda uma vez, das palavras de Brás Cubas: “Grande cousa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.” Enfim, vamos para casa. O que disse? Ah, sim! Podes usar à vontade os trechos do colóquio que julgares proveitosos. Dedique-os às primeiras traças que, depois de um século, roerem as páginas da primeira edição do meu Brás Cubas. Um piparote e adeus!

[Reiterado o convite para que continuássemos a conversar em outra oportunidade – entre as estantes da Livraria Garnier ou na sala de visitas do Cosme Velho –, nos despedimos e eu fiquei observando meu amigo partir. A verdade é que eu estivera em contato com um mestre; era o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa para além das palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério. Concluído o diálogo, ele acenou uma última vez e, com um suspiro, retornou à imortalidade, dispersando-se na noite e no silêncio.]

(Vicente Luís de Castro Pereira.
Posfácio a Memórias Póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Saraiva, 2009. Col. Clássicos Saraiva.)

Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (Vídeos)

Mia Couto



Craveirinha



Paulina Chiziane




Pepetela, Ondjaki, Agualusa



Complementação - Arte Africana

Imprescindíveis (Bandeira, Drummond, Lispector, Rosa, Veríssimo)

Manuel Bandeira



Carlos Drummond de Andrade



Clarice Lispector





Guimarães Rosa







Érico Veríssimo

Releituras Musicais das 'Metamorfoses' de Ovídio









Camões Perene (Vídeos)





sexta-feira, 24 de julho de 2009

Poemas de Manuel Bandeira

Cotovia

- Alô, cotovia!

Aonde voaste,

Por onde andaste,

Que saudades me deixaste?


- Andei onde deu o vento.

Onde foi meu pensamento

Em sítios, que nunca viste,

De um país que não existe. . .

Voltei, te trouxe a alegria.


- Muito contas, cotovia!

E que outras terras distantes

Visitaste? Dize ao triste.


- Líbia ardente, Cítia fria,

Europa, França, Bahia...

- E esqueceste Pernambuco,

Distraída?


- Voei ao Recife, no Cais

Pousei na Rua da Aurora.


- Aurora da minha vida,

- Que os anos não trazem mais!


- Os anos não, nem os dias,

Que isso cabe às cotovias.

Meu bico é bem pequenino

Para o bem que é deste mundo:

Se enche com uma gota de água.

Mas sei torcer o destino,

Sei no espaço de um segundo

Limpar o pesar mais fundo.

Voei ao Recife, e dos longes

Das distâncias, aonde alcança

Só a asa da cotovia,

- Do mais remoto e perempto

Dos teus dias de criança

Te trouxe a extinta esperança,

Trouxe a perdida alegria.


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive


E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada


Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei

—Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Eu sei, mas não devia (Marina Colasanti)


"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez paga mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."

(1972)

Para que Literatura? (Olga de Sá)


"Nesta época de tanta ciência e tecnologia, para que publicar textos de Literatura? Quem por eles se interessaria?
[...]
As perguntas sobre os grandes temas da vida humana se tecem nos poemas e nas obras de ficção. A Literatura, já o disse de outra maneira Roland Barthes, não responde às perguntas, fechando-as; porque as amplia, multiplica suas respostas. Não pretende atingir nenhuma “verdade”; pretende abrir nossa mente para as inúmeras percepções de mundo, que existem nos universos mentais das pessoas.
Mas do que precisamos, dizem os homens práticos, é de soluções, de respostas, de expedientes úteis, de resolver os problemas da cidade e do campo.
Então, para que Literatura? Para levantar questões fundamentais, abrir nosso mundo pequenino, feito de minúsculos fatos do dia-a-dia, ao grande painel da reflexão humana. Vivemos em Lorena, mas podemos transitar em Londres, Paris, Estados Unidos, Rússia, Antártida, Terra do Fogo, Noruega, Índia, no planeta Marte, nas Galáxias infinitas, enfim, no Cosmos. Sem perder o pé na realidade.
A leitura é o meio que temos para conviver com valores e idéias de outros universos, no espaço e no tempo, inacessíveis, de outro modo, à experiência humana. [...]
Por que não Literatura? Por que não Poesia? A poesia é o que criamos de mais próximo do núcleo da realidade e do ser. Parecendo etérea e desvinculada de nossas metas pragmáticas, a poesia, no entanto, nos dá o mundo em lágrimas e em risos, em vida e morte, em angústia e esperança, o mundo em dimensão de humano. O poema recupera o ritmo das coisas, capta o alento e a respiração do todo, e os exprime em “palavras-coisas” essenciais.
Por vezes, a poesia invade nossa vida sob forma de uma criança, um palhaço, um bêbado, um louco. Sob a forma de flor, de bicho, de árvore, de fogo, de beleza, enfim. Se isso acontecer, se formos capazes de reconhecer o rosto de nossa irmã-poesia nos pequenos ou breves encontros com as coisas, então estamos salvos do tédio ou do desespero.
Cada um de nós, enquanto se torna receptivo aos grandes temas da Literatura- o amor e a morte, a liberdade e o destino, o absurdo e o racional, a iniqüidade e a justiça, a angústia e o medo, o desespero e a esperança, a beleza e o grotesco, poderá encontrar em si o diálogo com as profundezas do ser e o silêncio diante do mistério.
Para que Literatura? Para termos o direito ao sonho e a garantia da realidade."

(Introdução a Contos de Cidadezinha, de Ruth Guimarães)

Poemas Selecionados


Tecendo a Manhã (João Cabral de Melo Neto)

1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro;
e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade) -
Fragmento

"[...] Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?"

Autopsicografia (Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Ao Braço do Menino Jesus Quando Apareceu (Gregório de Matos)

O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

O Ato de Narrar (Benjamin, Todorov, Chiappini)


O Narrador
(Walter Benjamin)

● “A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores.”
● A memória é a capacidade épica por excelência.
● “Em qualquer caso, o narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte.”
● “Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, mais se grava nele a coisa escutada.”
● “O narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada.”
● Dentro de nós há um narrador, e nós temos necessidade dele. Se não temos tempo e espaço como se exige, e nem um momento de ócio para extensão espiritual, não temos meios de sonhar e imaginar:
“O tédio é o pássaro onírico que choca o ovo da experiência.”
E assim a distância da voz do narrador será cada vez maior.

Modos de Narrar
● “O homem é apenas uma narrativa; desde que a narrativa não seja mais necessária, ele pode morrer.” (Tzvetan Todorov)
● “Quem narra, narra o que viu, viveu e testemunhou.” (Ligia Chiappini)

Tesouro Literário (Ana Maria Machado)

"Imaginemos uma situação. Há muitos e muitos anos. Alguém chega a uma terra estranha e inexplorada. Trata de se situar, ver onde há água, de onde vem o vento, que animais e plantas existem nas redondezas. Após algumas tentativas fracassadas, conclui que certo ponto é o local mais adequado para providenciar um abrigo. Trata de construí-lo e torná-lo o mais confortável possível. Depois encontra alguns vizinhos distantes, com outras vivências diferentes. Trocam experiências, fazem amizade, incorporam mutuamente as descobertas um do outro. Em mais algum tempo, constitui-se um novo núcleo familiar. A casa cresce, ganha uma plantação, um cercadinho para os animais. Faz-se uma estradinha e uma ponte para facilitar o convívio com os amigos. Novas e crescentes conquistas e aquisições. E assim por diante. Por várias gerações.
Alguns descendentes podem resolver explorar outros lugares. Mas levam a memória da casa, da plantação, das comidas, da ponte. Levam as ferramentas inventadas, os utensílios desenvolvidos, as lembranças acumuladas. E tudo se torna muito mais simples para eles graças a isso. Sua trajetória não parte do zero, mas de vitórias e realizações anteriores.
Se um desses descendentes sofrer de uma forma de amnésia total, não conseguirá aproveitar nada do que seus ancestrais fizeram. Ele não terá a memória das outras experiências. Vai ter que começar do nada. Chegando a uma terra estranha e inexplorada, pode nem ao menos tratar de se situar, ver onde há água, de onde vem o vento, que animais e plantas existem nas redondezas... Talvez procure um abrigo na areia onde a cheia do rio o carregue ou onde as feras vêm beber água. Não aprendeu com quem viveu antes. Não tem uma experiência anterior que lhe informe nada. Não sabe pescar nem cozinhar, não maneja uma ferramenta, desconhece armas e utensílios. Pior ainda, pode estar em frente à casa que herdou e não sabe para que serve aquilo. Pode ouvir o chamado de seus vizinhos e não entender o que lhe dizem.
Reduzido ao instinto, o pobre desmemoriado terá sua própria sobrevivência ameaçada. Um caso de trágico desperdício.
Ou então, pode-se imaginar alguém que deseja muito melhorar de vida e tem na sala uma arca cheia de tesouros que os avós e os pais lhe deixaram. Mata-se de trabalhar, mas nunca supôs que aquele baú fosse mais do que uma caixa vazia. Jamais teve o impulso de arrombá-lo ou a curiosidade de procurar uma chave que o abrisse. Todo aquele patrimônio, ali pertinho, ao seu alcance, não lhe serve para nada. Um monumento à inutilidade.
De alguma forma, toda a humanidade passa por riscos semelhantes. Temos de herança o imenso patrimônio da leitura de obras valiosíssimas que vêm se acumulando pelos séculos afora. Mas muitas vezes nem desconfiamos disso e nem nos interessamos pela possibilidade de abri-las, ao menos para ver o que há lá dentro. É uma pena e um desperdício."
(in Como e por que ler os clássicos universais desde cedo)

O Homem e a História (André Comte-Sponville)


"Antes do homem há o mundo, e o mistério do mundo. Estamos dentro: no âmago do ser, no âmago do mistério – no âmago de tudo. Não, por certo, no centro do universo, pois nada indica que haja um centro (se ele é infinito, a idéia de um centro seria contraditória), mas nele, envolvidos por todos os lados pelo que ele é ou contém (bilhões de galáxias, cada uma composta de bilhões de estrelas ou de sistemas solares), porém incapazes de sair dele vivos, ou simplesmente de sair dele... Um cadáver é coisa do mundo. Uma idéia – uma vez que alguém a pense ou dela se lembre – também. [...]
Depois, há a história: a história do mundo, a história da vida, a história da humanidade... Quando lecionava no último ano do colégio, às vezes começava a desenhar seu traçado no quadro-negro. Um longo traço horizontal, o mais retilíneo possível, por toda a extensão do quadro-negro. Na extremidade direita: estamos aqui (“agora”). Alguns centímetros à esquerda: a Segunda Guerra Mundial; em seguida, alguns centímetros mais adiante, a Primeira... Continuava, respeitando mais ou menos as proporções: aqui, a Revolução Francesa; aqui, a invenção da imprensa, depois o reinado de Carlos Magno, depois a queda do Império Romano, depois Júlio César, depois o século de Péricles... Estávamos perto da metade do meu traço. A invenção da escrita? Foi há uns cinco mil anos: chegamos à extremidade esquerda do quadro. Eu prolongava o traço pela parede: a pré-história... Aqui, aproximadamente, a idade do bronze, aqui a revolução neolítica, há mais ou menos dez mil anos... A parede acabava ali. Eu mostrava, pela janela, o pátio do recreio, a rua, a cidade... O paleolítico? Começa, ou melhor, termina, se voltarmos no tempo, no pátio. O aparecimento do homo sapiens? É ali, em algum lugar, do outro lado da rua, a cem ou duzentos metros... Homo erectus, homo habilis? Dois ou três quilômetros. Os primeiros hominídeos? Cerca de seis quilômetros. Os primeiros primatas? Cinqüenta ou sessenta. Os primeiros mamíferos? Cerca de duzentos quilômetros. O surgimento da vida na Terra? É bem mais longe: mais de três bilhões de anos, talvez quatro, ou seja, em algum lugar, se a classe estivesse voltada para o oeste, no meio do Atlântico. A constituição do sistema solar? Cinco bilhões de anos: aproximamo-nos da costa americana. O big-bang? Entre doze e quinze bilhões de anos, ao que parece: chegamos ao oceano Pacífico, mas do lado oeste, não longe do Japão ou do mar da China... Antes do big-bang? Mostrava o horizonte, o céu, o infinito: não se sabe, nem mesmo se houve um antes! Então eu voltava para a extremidade direita do quadro, para os quatro ou cinco centimetrozinhos que nos separavam de Auschwitz ou de Hiroshima... Punha meu dedo no meio desse minúsculo segmento: vocês nasceram aqui, dizia-lhes, mas não estariam aí sem tudo o que veio antes.
Antes de todo homem há a história: a história do mundo, a história da vida, a história dos homens. O plural precede o singular que ele supõe. A espécie precede o indivíduo, assim como outras espécies a precedem. Que esses grandes macacos que somos [...] tenham acabado por inventar a agricultura e a metalurgia, a arte e a religião, a escrita e as ciências, a moral e a política, a máquina a vapor e a informática, a gastronomia e o erotismo, o direito e a seguridade social, a filosofia e a conversação, não era previsível e não é nada desprezível! Que em meio a tudo isso tenha havido um assustador acúmulo de horrores – guerras e massacres, torturas e estupros, escravidões e genocídios –, isso ninguém ignora. [...] Miséria do homem: somente os humanos podem ser desumanos. Grandeza do homem: somente eles podem – e devem – tornar-se humanos. Anti-humanismo teórico: o homem não é mais que um animal entre outros. Humanismo prático: cabe a nós fazer dele outra coisa. [...]
Não se sabe como isso começou, nem mesmo se houve um começo. Mas sabemos que só fazemos continuar essa história que nos precede, que nos gera, que nos habita, que é essa nossa tarefa, nosso destino, nossa dignidade, enfim, o único lugar possível, para nós, tanto da coragem como da felicidade. Toda vida é recebida. Resta apenas vivê-la. Gerada, não criada. Resta apenas inventá-la."

(in A vida humana)

O Ato de Escrever (Eduardo Galeano, João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Melo Neto)

Por que Escrevo?
(Eduardo Galeano)

A gente escreve a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os demais, para denunciar o que dói e compartilhar o que dá alegria. A gente escreve contra a própria solidão e a dos outros. A gente supõe que a literatura transmite conhecimento e atua sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe; que ajuda a nos conhecermos para nos salvarmos juntos...



Catar Feijão
(João Cabral de Melo Neto)

1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

15 de Maio de 1905 (Alan Lightman)


"Imagine um mundo em que não há tempo. Somente imagens.
Uma criança à beira do mar, enfeitiçada pela primeira visão que tem do oceano. Uma mulher de pé em uma sacada de madrugada, cabelos soltos, vestindo folgadas roupas de dormir de seda, seus pés descalços, seus lábios. O arco da galeria perto da fonte Zähringer na Kramgasse, arenito e ferro. Um homem sentado na quietude de seu estúdio, segurando a fotografia de uma mulher; há dor no olhar dele. Uma águia-pescadora emoldurada no céu, as asas abertas, os raios do sol perfurando suas penas. Um menino sentado em um auditório vazio, seu coração em disparada como se estivesse no palco. Pegadas na neve em uma ilha no inverno. Um barco na água à noite, suas luzes tênues na distância, como uma pequena luz vermelha no céu negro. Um armário de remédios trancado. Uma folha no chão no outono, vermelha, dourada e marrom, delicada. Uma mulher agachada, esperando entre arbustos próximos à casa do ex-marido, com quem precisa conversar. Uma chuva leve em um dia de primavera, em um passeio que será o último passeio que um jovem fará no lugar que ele ama. Poeira em um peitoril de janela. Uma pilha de pimentões na Marktgasse, amarelos, verdes, vermelhos. Matterhorn, o pico todo branco cujas pontas forçam passagem para dentro do sólido céu azul, o vale verde e os chalés de lenhadores. O buraco de uma agulha. Mofo nas folhas, cristal, opalescente. Uma mãe em sua cama, chorando, cheiro de manjericão no ar. Uma criança em uma bicicleta na Kleine Schanze, sorrindo o sorriso de uma vida. Uma torre para preces, alta e octogonal, sacada aberta, solene, rodeada de brasões. Vapor subindo de um lago no início da manhã. Uma gaveta aberta. Dois amigos em um café, o lustre iluminando o rosto de um dos amigos, o outro na penumbra. Um gato olhando um inseto na janela. Uma jovem em um banco, lendo uma carta, lágrimas de contentamento em seus olhos verdes. Um amplo descampado, delimitado por cedros e espruces. Luz do sol, em ângulos abertos, rompendo uma janela no fim da tarde. Uma imensa árvore caída, raízes esparramadas no ar, casca e ramos ainda verdes. O branco de um veleiro, com o vento de popa, velas se agitando como asas de um gigantesco pássaro branco. Um pai e um filho sozinhos em um restaurante, o pai, triste, olhos fixos na toalha de mesa. Uma janela oval, de onde se avistam campos de feno, uma carroça de madeira, vacas, verde e púrpura na luz da tarde. Uma garrafa quebrada no chão, líquido marrom nas fissuras do piso, uma mulher com os olhos vermelhos. Um velho na cozinha, preparando o café da manhã para o neto, o menino à janela com os olhos fixos em um banco pintado de branco. Um livro surrado sobre uma mesa ao lado de um abajur de luz branda. O branco na água quando quebra uma onda, erguida pelo vento. Uma mulher deitada no sofá, cabelos molhados, segurando a mão de um homem que nunca voltará a ver. Um trem com vagões vermelhos, sobre uma grande ponte de pedra, de arcos delicados, o rio que sob ela corre, minúsculos pontos que são as casas à distância. Partículas de poeira flutuando nos raios de sol que entram por uma janela. A pele fina que recobre um pescoço, fina o suficiente para se sentir o pulsar do sangue que sob ela corre. Um homem e uma mulher nus, envolvidos um no outro. As sombras azuis das árvores numa noite de lua cheia. O topo de uma montanha com um vento forte constante, os vales que se esparramam por todas as suas bordas, sanduíches de carne e queijo. Uma criança se esquivando do colo do pai, os lábios do pai retesados de raiva, a criança sem entender. Um rosto estranho no espelho, grisalho nas têmporas. Um jovem segurando um telefone, estupefato com o que está ouvindo. Uma foto de família, os pais jovens e tranqüilos, as crianças trajando gravatas e vestidos e sorrindo. Uma pequeniníssima luz, visível por entre as árvores de um bosque. O vermelho do pôr-do-sol. Uma casca de ovo, branca, frágil, intacta. Um chapéu azul na praia, trazido pela maré. Rosas aparadas flutuando sob uma ponte, próximas a um castelo que vai emergindo. O cabelo ruivo de uma amante, selvagem, traiçoeiro, promissor. As pétalas púrpuras de uma íris na mão de uma jovem mulher. Um quarto com quatro paredes, duas janelas, duas camas, uma mesa, um lustre, duas pessoas de rostos vermelhos, lágrimas. O primeiro beijo. Planetas no espaço, oceanos, silêncio. Uma gota d’água na janela. Uma corda enrolada. Uma vassoura amarela."

(in Sonhos de Einstein)

Os Direitos do Leitor (Daniel Pennac)



O direito de não ler

O direito de pular páginas

O direito de não terminar um livro

O direito de reler

O direito de ler qualquer coisa

O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível)

O direito de ler em qualquer lugar

O direito de ler uma frase aqui e outra ali

O direito de ler em voz alta

O direito de calar

(in Como um romance)

A Última Página (Alberto Manguel)


"Toda etiqueta, toda identidade fixa ou imposta que tente encerrar a realidade no sudário de um dogma pode ser dissolvida pela operação inspirada das palavras."

(in A cidade das palavras)

"[...] Os leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber (sempre achamos que estamos sozinhos em cada descoberta e que cada experiência, da morte ao nascimento, é aterrorizantemente única), ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos – a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo – ou pelos deuses – o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso. [...]"

(in Uma história da leitura)


História da Escrita (Textos e Vídeo)

"Dizem que a primeira e maior invenção foi o fogo. Seria? E a fala? Não é mais importante? Outros querem que a primeira invenção seja a roda. Até pode ser. Mas aqui, nas Américas, os incas e os astecas não usavam roda e se davam muito bem. Para mim, a invenção importante mesmo foi o alfabeto. Antes, alguns povos escreviam com ideogramas, que não representavam os sons da fala, mas sim as idéias. Era um bom sistema, porque permitia aos chineses, aos coreanos, aos japoneses lerem, cada qual na sua língua, as mesmas escrituras. Era ruim, porque se precisava decorar mil a dois mil ideogramas para ler ou escrever. A escrita alfabética, mais recente, é melhor. Seu defeito é ficar presa na língua. Sua vantagem é a facilidade com que se alfabetiza."

(Darcy Ribeiro, Noções de coisas.)


"Em quase todas as civilizações a história da escrita começa no mesmo primeiro capítulo. No caso dos chineses – assim como com os sumérios, os egípcios, os hititas e os cretenses – está claro que os primeiros sinais foram desenhos invariáveis, isto é, pictogramas e combinações de pictogramas. Como se poderia, talvez, esperar, certos pictogramas de sistemas de escrita desenvolvidos em partes diferentes do mundo mostram notáveis semelhanças, apesar do fato de terem se originado de culturas bastante diferentes."

(Georges Jean. Writing: the story of alphabets and scripts.)


Um antigo vídeo didático, ainda hoje considerado de fundamental importância para a formação de professores:





Mrs. Dalloway (Virginia Woolf)



"E com quem falava ele? indagou Sally. Quem era aquele homem de aspecto tão distinto? Vivendo no deserto, como dizia, tinha uma insaciável curiosidade de saber quem eram as pessoas. [...]
- Mas que fez ele? - indagou Sally. Beneficiência, supunha. E eram felizes os dois? indagou Sally (ela era extremamente feliz); pois, admitia, nada sabia deles, apenas saltava às conclusões, como se faz: pode-se acaso saber alguma coisa, mesmo da gente com quem se vive todos os dias? indagou. Não somos todos uns prisioneiros? Lera uma peça maravilhosa a respeito de um homem que escrevia na parede de sua cela, e ela achava que essa era a verdade da vida: a gente escrevia coisas na parede. Desprezada das relações humanas (eram tão difíceis as pessoas), fora muitas vezes ao jardim, receber das suas flores uma paz que os homens e as mulheres não lhe davam nunca. Mas não; ele não gostava de legumes; preferia as criaturas humanas, dizia Peter. Na verdade, os jovens são belos, disse Sally, vendo Elizabeth atravessar o salão. Como era diferente de Clarissa, na sua idade! Poderia ele tirar alguma coisa dela? Ela não abria os lábios. Não muito, ainda não, pelo menos, admitiu Peter. Era como um lírio, disse Sally, um lírio à beira de um pântano. Mas Peter não concordava em que não se pudesse saber nada. Sabe-se tudo, afirmava; ele, pelo menos, sabia."

(Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.)


segunda-feira, 20 de julho de 2009

Ítaca (Konstantinos Kaváfis)


"Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas."
(Trad. José Paulo Paes)




Eros e Psique (Fernando Pessoa)


"Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia."
(in Cancioneiro)

domingo, 19 de julho de 2009

Humanização (Antonio Candido)

"O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante."
(in O direito à literatura)

Outro de Mim (Jorge Luis Borges)

"Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. [...] Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. [...] Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. [...] Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. [...] Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página."

(in Borges e Eu)

Diálogo com o Outro (Merleau-Ponty)


"Na experiência do diálogo, constitui-se entre mim e o outro um terreno comum, meu pensamento e o dele formam um só tecido, minhas falas e as dele são invocadas pela interlocução, inserem-se numa operação comum da qual nenhum de nós é o criador. Há um entre-dois, eu e o outro somos colaboradores, numa reciprocidade perfeita, coexistimos no mesmo mundo. No diálogo, fico liberado de mim mesmo, os pensamentos de outrem são dele mesmo, não sou eu quem os formo, embora eu os aprenda tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles, assim como as objeções de outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia possuir, de tal modo que, se lhe empresto pensamentos, em troca ele me faz pensar. Somente depois, quando fico sozinho e me recordo do diálogo, fazendo deste um episódio de minha vida privada solitária, quando outrem tornou-se apenas uma ausência, é que posso, talvez, senti-lo como uma ameaça, pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e na discordância."

(in O olho e o espírito)

Espaço para o Diálogo (Mikhail Bakhtin)



"Ser significa conviver. A morte absoluta (o não-ser) é o estado de não ser ouvido, de não ser reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para o outro e, através do outro, ser para si. O ser humano não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira; olhando para dentro de si ele olha para os olhos de outro ou com os olhos de outro. [...] Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo."

(in Estética da criação verbal)